Quando se pensa em filmes antigos, é comum virem à mente histórias açucaradas, galãs e mocinhas românticos e inocentes, heróis supervirtuosos que sempre derrotam vilões maquiavélicos, todo mundo vestido da cabeça aos pés – em contraste com as produções atuais, em que tudo é mostrado sem parcimônia. Sexo? Drogas? Violência? Parece que isso não existia antes dos anos 1960.
Mas existia, e sua ausência das produções cinematográficas tem um culpado: o Código de Produção de Filmes, mais conhecido como Código Hays. Ele foi uma peça fundamental no desenvolvimento do cinema dos anos 1930 e de toda a Era de Ouro de Hollywood.
Na esteira da I Guerra Mundial e da pandemia de gripe espanhola, a década de 1920 foi um período de extravasamento nos costumes, que se refletia nas artes populares. O cinema, como a forma de entretenimento que mais se expandia, adquiriu um papel central nesse cenário. A permissividade vista nos filmes começou a incomodar os setores conservadores da sociedade americana, em especial os católicos. Fora das telas, escândalos como o misterioso assassinato do diretor William Desmond Taylor e o julgamento do comediante Roscoe “Fatty” Arbuckle pelo estupro e morte da atriz Virginia Rappe, ambos em 1922, contribuíram para manchar a imagem de Hollywood.
No mesmo ano, os principais estúdios se uniram e criaram a Motion Picture Producers and Distributors of America (MPPDA), com o intuito de “estabelecer e manter os mais elevados padrões morais e artísticos possíveis na produção cinematográfica”. Para comandá-la, foi escolhido o advogado presbiteriano Will H. Hays, ex-chefe do Comitê Nacional Republicano e Diretor-geral do Serviço Postal no governo do presidente Warren G. Harding.

Enquanto isso, em meio ao clamor pela moralização do cinema, órgãos de censura começaram a pipocar em vários estados e cidades. Porém, cada um tinha seus critérios e não havia um padrão – o que era inaceitável aqui era passável acolá –, impossibilitando a criação de uma versão única de um filme que satisfizesse a todos.
Em 1927, Hays veio com a primeira tentativa de um regulamento uniforme de autocensura: uma lista de proibições que ficou conhecida como “Don’ts and Be Carefuls” (algo como “os Não-Faça e os Tenha-Cuidado”). Para aplicá-la, criou o Comitê de Relações dos Estúdios (SRC). A lista era elementar e não surtiu muito efeito, mas incluía muitos pontos que se tornariam a base do futuro Código de Produção.
Outro evento capital para o advento do Código foi o 28º Congresso Eucarístico Internacional. Realizado em Chicago em junho de 1926 e organizado pelo arcebispo da cidade, o cardeal George Mundelein, teve como diretor de publicidade o jornalista Joseph Ignatius Breen. Por intermédio de Martin Quigley, editor do semanário Exhibitors Herald (mais tarde, Motion Picture Herald), a Fox Film negociou com a Igreja Católica a produção de um documentário sobre o evento. Na estreia, em novembro, Hays foi um dos que discursaram. O Congresso Eucarístico, de uma só tacada, sacramentou o casamento entre cinema e religião e apresentou os homens que fariam o Código.
Dois católicos fervorosos de ascendência irlandesa, Quigley e Breen continuaram trabalhando juntos após o congresso. Quigley sempre advogou a criação de um código de ética cinematográfico, e usava suas publicações para difundir a ideia. Em 1929, entrou em cena Daniel A. Lord – além de padre jesuíta, um prolífico escritor de livros católicos, panfletista, autor de peças teatrais e músico, que chegara a Hollywood em 1926 para ser consultor técnico no épico Rei dos reis (The King of Kings, 1927), de Cecil B. DeMille.
Com a bênção do cardeal Mundelein, Quigley, Breen e Lord se reuniram no final de 1929 para cunhar um documento que tornasse “a moralidade atraente e o senso de responsabilidade do cinema para com o público claro e inequívoco”, segundo o padre. O documento foi creditado como “O Código de Produção de Martin J. Quigley e do Reverendo Daniel A. Lord, S.J., baseado em uma ideia original de Martin J. Quigley” e adotado oficialmente pela MPPDA em 31 de março de 1930, logo recebendo a alcunha de Código Hays.

Como princípios gerais, o Código determinava que os filmes deveriam “apresentar padrões corretos de vida” e não poderiam “rebaixar os padrões morais” dos espectadores nem “ridicularizar a lei, natural ou humana, ou criar simpatia por sua violação.” Entre as regras mais específicas estavam as de não mostrar violência explícita, uso de drogas, adultério, nudez, sexo “ilícito”, “perversão sexual” (o que incluía a homossexualidade), miscigenação, palavras obscenas e uma série de coisas que feriam a moralidade católica. Havia ainda proibições insólitas, como as de mostrar casais (mesmo casados) dormindo na mesma cama e banheiros (pelo visto, ninguém tinha necessidades fisiológicas nos anos 1930!). Clique aqui para ler a versão completa do documento (em inglês), com todas as alterações feitas ao longo de seus 38 anos de existência.
No entanto, o historiador cultural Thomas Doherty aponta duas falhas estruturais no Código, que fizeram com que ele fosse amplamente ignorado até 1934. Primeiro, a falta de um método padronizado de aprovação. Com frequência os estúdios enviavam cópias finalizadas ao SRC, o que exigia custosas reescritas, refilmagens e remontagens. Segundo, se um produtor contestasse uma decisão do Comitê, o caso era julgado por uma comissão de três produtores, que nem sempre eram imparciais.
Assim, a imoralidade continuou galopante. Em A divorciada (The Divorcee, 1930), Norma Shearer descobre uma traição do marido e paga na mesma moeda. Em Marrocos (Morocco, 1930), Marlene Dietrich beija outra mulher na boca, assim como Greta Garbo em Rainha Cristina (Queen Christina, 1933). Jean Harlow fisga o chefe casado em A mulher parisiense dos cabelos de fogo (Red-Headed Woman, 1932). O último chá do general Yen (The Bitter Tea of General Yen, 1932) aborda uma relação inter-racial entre uma americana e um chinês, o que era ilegal em várias partes dos Estados Unidos na época. Em Serpente de luxo (Baby Face, 1933), Barbara Stanwyck foi obrigada pelo pai a se prostituir na juventude e, ao conseguir um novo emprego, seduz todos os superiores até se casar com o presidente da empresa. Já em Levada à força (The Story of Temple Drake, 1933), Miriam Hopkins é uma mulher de sexualidade livre que é sequestrada e estuprada por um gângster. Isso sem falar na ousada Mae West – os exemplos são infinitos. Esse período, da consolidação dos filmes falados a 1934, entrou para a história de Hollywood como a era Pré-Código.

Sentindo-se traídos, os conservadores reagiram. Em 1933, foi criada a Legião Nacional da Decência, que iniciou uma verdadeira cruzada contra o cinema, organizando protestos, emitindo panfletos, instando os fiéis a boicotarem os filmes considerados imorais e criando seu próprio sistema de classificação.
Também em 1933, Franklin D. Roosevelt assumiu a presidência dos Estados Unidos com seu New Deal, pacote de medidas para conter a Grande Depressão. Uma dessas medidas previa que a produção cinematográfica passaria a ser regulada pela Lei Nacional de Recuperação Industrial, fazendo Hollywood antever o risco da criação de um órgão de censura federal controlado pelo governo.
Ao mesmo tempo, o jornalista Henry James Forman publicou o livro Our Movie Made Children (“Nossas crianças formadas pelo cinema”), que revelava, em tom alarmista, os resultados de uma pesquisa sobre os efeitos da sétima arte na mente dos jovens americanos.
Pressionada por todos os lados, em junho de 1934 a MPPDA aprovou a criação da Administração do Código de Produção (PCA), que substituiu o SRC, visando a fortalecer a efetividade do Código. Breen, que desde fevereiro estava à frente do Comitê, assumiu o comando do novo departamento.
A partir de julho, todos os estúdios membros teriam de submeter seus filmes ao crivo da PCA e receber um certificado de aprovação. As decisões de Breen só poderiam ser contestadas pelo conselho administrativo da MPPDA, e quem desobedecesse deveria pagar uma multa de 25 mil dólares. O primeiro filme a receber o selo de aprovação foi A marcha dos séculos (The World Moves On, 1934), de John Ford.

Outra importante mudança era que a censura passaria a ocorrer antes do início da produção. Antes de qualquer outra coisa, o estúdio deveria encaminhar o script ao escritório da PCA, que faria sua análise, evitando assim o desperdício de tempo e dinheiro com refilmagens.
No entanto, Breen sempre buscou reforçar a ideia de que seu trabalho não consistia em censura, e sim em autorregulação. De fato, sua atuação ia além da de um mero censor. Ele não apenas cortava passagens que violassem o Código, mas também sugeria alternativas e chegava a reescrever trechos inteiros. O processo não acabava na revisão do script – todo o andamento era supervisionado, incluindo visitas aos estúdios, até chegar à versão final e à concessão do selo. Dessa forma, Breen e seus subordinados poderiam ser vistos como coautores de muitos roteiros hollywoodianos de 1934 a 1954, período em que ele esteve à frente da PCA.
Muitas vezes isso implicava longas negociações, que podiam levar meses ou até anos. Ainda segundo Doherty, os produtores independentes, como David O. Selznick e Howard Hughes, costumavam ser os mais resistentes. Exemplos clássicos são a batalha de Selznick para usar a palavra “damn” na famosa frase de Clark Gable em …E o vento levou (Gone with the Wind, 1939) e a controvérsia em torno do busto de Jane Russell em O proscrito (The Outlaw), que, embora tenha sido concluído em 1941, só estreou em 1943 e foi lançado nacionalmente em 1946.

Mas não eram só as produções novas que caíam nas mãos de Breen. Filmes anteriores a julho de 1934 relançados após a criação do Còdigo também estavam sujeitos à censura, e, como já estavam prontos, o jeito era passar a tesoura. Foi o caso, por exemplo, de dois filmes de 1931: Frankenstein e Inimigo público (The Public Enemy). O primeiro teve cortadas as cenas em que Colin Clive se compara a Deus após criar o monstro e em que Boris Karloff joga a menina Marilyn Harris no lago. Já o segundo perdeu três cenas: James Cagney sendo atendido por um alfaiate afeminado, Joan Blondell servindo café da manhã para Edward Woods na cama e Cagney sendo seduzido pela namorada do chefe. Esses cortes costumavam ser feitos no negativo original e muitos dos trechos censurados se perdiam para sempre. Porém, nos dois casos citados, felizmente as cenas foram encontradas em outras cópias e restauradas.
A PCA estendia seus tentáculos sobre (quase) toda a produção de Hollywood, desde grandes lançamentos a filmes B, curtas-metragens e até a publicidade e os desenhos animados. Nem a personagem Betty Boop escapou, tendo que abandonar sua imagem sensual e passar a vestir roupas mais comportadas (até os cachos de seus cabelos tiveram que diminuir!).
Todavia, algumas produções independentes conseguiam driblar o Código. Uma delas foi Child Bride (1938), que mostrava Shirley Mills, de apenas 12 anos, nadando nua. Ironicamente, o filme Tarzan e sua companheira (Tarzan and His Mate), lançado em abril de 1934, ainda antes da criação da PCA, fora censurado por uma cena parecida, mas com uma atriz adulta, Maureen O’Sullivan (na verdade, sua dublê de corpo).
Questões políticas também eram alvo da censura. Várias propostas de filmes antinazistas foram proibidas, até que a Warner Bros. conseguiu produzir Confissões de um espião nazista (Confessions of a Nazi Spy, 1939). Porém, com a entrada dos Estados Unidos na guerra, o assunto se tornou inevitável, forçando Breen a fazer concessões.

O declínio começou com o pós-guerra. Até aí, os estúdios tinham suas próprias cadeias de cinemas. Em 1948, a Suprema Corte americana decidiu que isso violava a lei antitruste e, quatro anos depois, que o cinema tinha direito à liberdade de expressão. As duas decisões históricas colocaram em xeque o sistema de estúdios e, consequentemente, o Código.
Ao tirar dos estúdios o controle sobre a distribuição e a exibição dos filmes, a Corte abriu as portas do mercado americano às produções estrangeiras, que não eram da alçada de Breen e apresentavam uma moralidade diferente daquela vigente na cultura americana. Isso, aliado aos horrores guerra e à concorrência crescente da televisão, trouxe uma nova mentalidade ao público, tornando o Código cada vez mais obsoleto.
Em 1951, Otto Preminger dirigiu a peça The Moon Is Blue na Broadway e assinou contrato com a United Artists para fazer uma versão cinematográfica. Breen vetou diversos pontos do roteiro, mas o estúdio comprou a briga de Preminger e desafiou a PCA, continuando com a produção. O filme, que no Brasil tem o sugestivo título Ingênua até certo ponto (1953), se tornou o primeiro de um grande estúdio a ser lançado sem o selo de aprovação do Código, abrindo um precedente para que outros fizessem o mesmo.
O golpe fatal veio com a aposentadoria de Breen, em 1954 – mesmo ano da morte de Hays, que havia deixado a MPPDA em 1945. Após vinte anos, o homem que fora a encarnação do Código era carta fora do baralho, sendo substituído por Geoffrey Shurlock, seu segundo em comando desde a criação da PCA.
Embora ainda tenha durado oficialmente 14 anos, o Código perdeu suas últimas forças. Durante a década de 1950 ele sofreu uma série de alterações, passando por uma grande revisão em 1956. Em setembro de 1966 – nove meses após a morte de Breen –, foi totalmente reformulado e, dois anos depois, em novembro de 1968, enfim abandonado, dando lugar a um sistema de classificação.
Em última análise, o Código deixou seu legado. Se por um lado cerceou a liberdade dos cineastas, por outro estimulou sua criatividade, forçando-os a buscar alternativas mais sutis para transmitir suas ideias. E essa sutileza é o grande apelo da Era de Ouro de Hollywood, aquilo que a distingue do cinema atual e a torna especial para os fãs do século XXI.