Inimigo público

The Public Enemy

1931

Sinopse: Em Chicago, dois amigos de infância entram para o mundo do crime e se tornam poderosos gângsteres durante a Lei Seca.

Segundo os dicionários, uma das acepções de clássico é: “que ou o que é considerado como modelo do gênero.” Se assim é, hoje vou falar de um legítimo clássico.

Junto a Alma no lodo (Little Caesar, 1931) e Scarface: A vergonha de uma nação (Scarface, 1932), Inimigo público é uma das obras que definiram e popularizaram – se não criaram – o gênero gângster. De quebra, revelou um dos maiores astros do cinema americano: James Cagney. São todos grandes filmes, mas, para mim, a presença avassaladora de Cagney e a audaciosa direção de William A. Wellman fazem deste o melhor dos três.

O filme narra a saga de Tom Powers (Cagney) e Matt Doyle (Edward Woods), dois amigos de infância que se tornam criminosos. É baseado no romance não publicado Beer and Blood, de John Bright e Kubec Glasmon, dois ex-jornalistas que testemunharam os feitos de Al Capone e as batalhas entre gangues de Chicago. Bright e Glasmon receberam uma indicação ao Oscar na extinta categoria de Melhor História Original. Curiosamente, outros dois filmes com Cagney foram indicados na mesma categoria naquele ano: Caminhos do Inferno (The Doorway to Hell, 1930) e As mulheres enganam sempre (Smart Money, 1931).

Como a maioria dos filmes de gângsteres da época, é uma história de ascensão e queda. Após um rápido prólogo afirmando que a intenção dos criadores é denunciar uma realidade existente e não exaltar o marginal, conhecemos Tom e Matt pré-adolescentes. Como que para explicar as raízes da criminalidade, os dois cometem pequenas infrações e algumas travessuras, sempre lideradas por Tom, que demonstra especial perversidade, enquanto Matt o acompanha de forma um tanto passiva. Os dois se metem com o trambiqueiro Putty Nose (Murray Kinnell), que lhes dá seus primeiros “serviços”. À medida que eles crescem, seus delitos (e a crueldade de Tom) também vão ficando cada vez maiores, até eles começarem a fazer fortuna no comércio ilegal de cerveja. No fim, os dois pagam com a vida por seus atos, e o filme termina com um epílogo alertando que “o fim de Tom Powers é o fim de todo marginal”, e o “inimigo público” é um problema que “cedo ou tarde nós, o público”, devemos resolver.

James Cagney e Edward Woods

Na infância, após uma de suas traquinagens, Tom leva uma surra do pai, policial, e, orgulhoso, se recusa a ceder à dor. Ao mesmo tempo, é protegido e mimado pela mãe (Beryl Mercer). Depois de adulto, com o pai já falecido, seu comportamento é contrastado com o do irmão mais velho, o escrupuloso Mike (Donald Cook), que leva uma vida de trabalhador honesto, volta da I Guerra Mundial condecorado e despreza a origem criminosa do dinheiro do caçula. Tom, por sua vez, acusa Mike de não ser muito diferente, pois também matou na guerra. Desde o começo Tom dispensa um tratamento rude às mulheres e não consegue ter relacionamentos duradouros. Quando a namorada do chefe da gangue se aproveita da embriaguez de Tom e vai para a cama com ele, ele reage dando um tapa nela. Como resultado das frustrações, ele se torna cada vez mais violento. Seu recrudescimento é tamanho que até o seu jeito de demonstrar afeto é dar leves “batidinhas” na pessoa (o gesto se repete tantas vezes que se torna uma marca registrada e é mostrado até nos créditos do filme).

Numa sequência meio tragicômica, Tom leva um soco de Mike e cai sobre uma cadeira, que se desmantela, como se feita de isopor. Wellman instruiu Cook a bater de verdade. Ele obedeceu, quebrando um dente de Cagney, que mesmo assim ficou firme e concluiu a cena.

Mas, se a intenção dos produtores não era exaltar o marginal, eles falharam miseravelmente. Apesar dos avisos moralistas e de os bandidos acabarem mortos, assim como em Alma no lodo e Scarface, a imagem do gângster é glamourizada, com dinheiro, carrões, mansões, belas mulheres e armas letais. Segundo o historiador Morris Dickstein, o gângster é retratado como um anti-herói trágico, um self-made man que alcança a glória pela força de vontade, mas acaba derrotado pelo próprio sucesso. Seu apelo estava nesse mito do sucesso, com o qual o público da Grande Depressão era impelido a se identificar.

Some-se a isso a atuação de Cagney. Com sua fisionomia naturalmente marcante, ele já não precisava fazer muita coisa para chamar atenção. Mas Jimmy nos brinda com uma performance eletrizante, cheia de expressões faciais, movimentos ágeis (que evidenciam seu passado de dançarino) e uma metralhadora verbal. O público ficou embevecido e nem ligou para as maldades do personagem. Era impossível não torcer por ele.

Cagney, Woods e Robert Emmett O’Connor

Parece inimaginável, mas originalmente Woods foi escalado como Tom, e Cagney como Matt. Felizmente (menos para Woods, cuja carreira no cinema durou apenas oito anos e doze filmes), logo nos primeiros ensaios Wellman percebeu que Jimmy seria muito mais efetivo na pele do protagonista e inverteu os papéis.

Por mais acertada que tenha sido a decisão, ela acabou gerando uma gafe. Na primeira parte do filme, em que os dois personagens aparecem na infância, o menino que vive Tom (Frank Coghlan Jr.) é a cara de Woods, já o pequeno Matt (Frankie Darro) é bem mais parecido com Cagney. Entretanto, quando a troca de papéis aconteceu, a sequência já havia sido filmada e, provavelmente por falta de tempo ou dinheiro, acabou ficando assim mesmo.

Antes de ser diretor de cinema, William Augustus “Wild Bill” Wellman foi expulso do colégio, detido por furto de automóvel, jogador de hóquei e piloto de avião na I Guerra. Ao ser contratado para dirigir Inimigo público, ele disse ao produtor Darryl F. Zanuck: “Vou lhe dar o filme mais duro e violento que você já viu.” E cumpriu a promessa. Wellman criou um punhado de cenas ousadas e engenhosas (nem todas violentas) que merecem ser mencionadas:


O alfaiate. Tom e Matt vão ao alfaiate encomendar ternos novos e têm suas medidas tiradas por um assistente efeminado. Quando o filme foi relançado em 1941, já com o Código Hays em vigor, a cena foi cortada, sendo restaurada em anos mais recentes.

A toranja. Durante uma discussão no café da manhã, Tom, mal-humorado, acerta uma toranja no rosto da namorada, Kitty (Mae Clarke, que, embora protagonize a cena mais lembrada do filme, não aparece nos créditos). Existem versões divergentes sobre a origem da cena. Wellman afirmou tê-la inventado porque sempre tinha vontade de fazer o mesmo quando discutia com a esposa. Outra versão diz que ela foi inspirada no gângster Hymie Weiss, que atirou, não uma toranja, mas uma omelete na cara da namorada. No entanto, segundo Clarke e Cagney, eles tiveram a ideia para pregar uma peça na equipe. A única surpresa da atriz foi ver a sequência aparecer na edição final, já que não estava no script. Em sua autobiografia, Cagney revelou que o ex-marido de Clarke, Lew Brice, tinha o trecho cronometrado e entrava no cinema na hora certa para vê-lo, ia embora e voltava na sessão seguinte só para vê-lo novamente. Jimmy também conta que, depois do filme, não podia mais ir a um restaurante sem que um gaiato viesse lhe oferecer uma toranja (que quase sempre ele comia de bom-grado!).


A vingança contra Putty Nose. Tom e Matt decidem liquidar Putty Nose, que lhes arranjou seu primeiro assalto e prometeu acobertá-los, mas deu no pé quando o plano falhou. Eles o seguem até sua casa – um gato preto cruza o caminho de Putty na calçada –, forçam entrada e começam a ameaçá-lo. Desesperado, Putty vai até o piano e tenta sensibilizá-los tocando uma velha música de quando os dois eram meninos. Tom saca o revólver e a câmera vai até Matt, que observa sem reação. O espectador só ouve dois tiros, um grunhido de Putty Nose e seu corpo caindo sobre o teclado do piano. Em seguida, Tom diz: “Acho que vou ligar para a Gwen. Ela já deve estar em casa”, dá suas duas batidinhas no peito de Matt e sai tranquilamente pela porta, deixando o amigo atônito.

Putty Nose nas mãos de Tom e Matt

O cavalo. Sam “Nails” Nathan (Leslie Fenton), um comparsa da gangue, morre acidentalmente ao cair de um cavalo. Tom e Matt vão ao clube de equitação, perguntam ao funcionário quanto vale o animal e dão o dinheiro. Em seguida vão até a cavalariça e atiram no equino, para assombro do empregado. A sequência (e provavelmente o personagem de Fenton) é inspirada em um incidente real ocorrido em 1924, em que o gângster Sam “Nails” Morton morreu da mesma forma, então seus colegas sequestraram o cavalo, levaram-no até o local do acidente e o mataram.

O assassinato de Matt. Nessa parte, assim como na da morte de Putty Nose, Wellman faz um uso brilhante do som. Quando a gangue está escondida na casa do chefe, ouve-se um barulho semelhante a tiros, mas Tom olha pela janela e vê que é só um caminhão de carvão – na verdade, uma armadilha do bando rival. No outro dia, Tom e Matt saem e, quando ouvem o mesmo ruído, se agacham num gesto perfeitamente coreografado. De novo, é só o carvão. Porém, quando eles voltam a andar, atiradores escondidos no prédio em frente abrem fogo, acertando Matt e por pouco não atingindo Tom. O bizarro é que foram usadas balas de verdade na cena, como era comum na época.

Tom vê Matt ser morto pela gangue rival

O durão (ou não). Tom vai atrás da gangue rival para vingar a morte de Matt. Em uma noite de chuva torrencial, ele entra sozinho na loja onde eles estão escondidos e há um tiroteio. Logo depois Tom sai ferido, cambaleia sob o dilúvio e, antes de cair na sarjeta, murmura: “Não sou tão durão!”

O vingador solitário

O fim de Tom. Paddy Ryan (Robert Emmett O’Connor), o chefe da gangue de Tom, avisa a Mike que ele foi sequestrado pelos rivais no hospital. Pouco depois, Mike atende um telefonema dizendo que o irmão será levado para casa em breve. A campainha toca e, quando Mike abre a porta, se depara com o corpo de Tom, literalmente “empacotado”, que desaba no chão. Enquanto a mãe arruma o quarto alegremente para a volta do filho caçula, o mais velho se levanta com passos incertos. O que dirá à mãe? O filme acaba sem resposta.

O fim de Tom Powers

Beryl Mercer, no papel da mãe coruja de Tom e Mike, tem uma das atuações mais comoventes do filme. Ingênua e aflita, ela parece não enxergar (ou prefere não ver) a maldade do filho criminoso, a quem mima como a um bebê. A sequência final, em que ela espera cheia de alegria o regresso de Tom, sem saber que ele chegará morto, é especialmente tocante. Como disse Cazuza, só as mães são felizes.

Jean Harlow, ainda uma novata, com uma performance um tanto robótica, aparece como Gwen Allen, a segunda namorada de Tom. Embora sua personagem seja secundária, ela aparece em segundo lugar nos créditos, à frente de Woods. O papel foi oferecido originalmente a Louise Brooks, que recusou.

Tom e Matt conhecem Gwen

Outro destaque do elenco é Joan Blondell, que interpreta Mamie, a namorada de Matt. Embora seja namorada de um gângster, ela parece romântica, diferente dos papéis sexualmente ostensivos que consagrariam Blondell na Warner. Inimigo público foi o terceiro dos sete filmes em que ela trabalhou com Cagney, seu amigo desde os tempos da Broadway. Certa vez, o ator disse que Joan foi a única mulher que ele amou além da esposa.

Sam McDaniel, irmão de Hattie McDaniel, faz uma pequena ponta como o maître do restaurante onde Tom e Matt conhecem Kitty e Mamie.

Filmado em apenas 26 dias, em janeiro e fevereiro de 1931, com um parco orçamento de 151 mil dólares, Inimigo público estreou em abril e foi a nona maior bilheteria do ano nos Estados Unidos. No final de 2011, um raro cartaz original, até então desconhecido, foi encontrado junto a outros pôsteres de filmes dos anos 1930 num porão em Berwick, Pensilvânia, e leiloado por quase 60 mil dólares.

O cartaz descoberto em Berwick
Ficha técnica:
Diretor: William A. Wellman
Elenco: James Cagney, Jean Harlow, Edward Woods, Joan Blondell, Donald Cook, Leslie Fenton, Beryl Mercer, Robert Emmett O’Connor, Murray Kinnell, Mae Clarke, Frank Coghlan Jr., Frankie Darro, Mia Marvin, Robert Homans, Harold Minjir, Lee Phelps e Sam McDaniel
Roteiro: Harvey F. Thew (baseado no romance Beer and Blood, de John Bright e Kubec Glasmon)
Fotografia: Devereaux Jennings
Produtor: Darryl F. Zanuck
Estúdio: Warner Bros.
País: EUA
www.imdb.com/title/tt0022286/

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