
Em dezembro de 1933, a RKO Radio Pictures lançou o musical Voando para o Rio (Flying Down to Rio). Com uma história passada no Brasil, como o título sugere, o filme tinha como protagonistas Dolores del Rio, Gene Raymond e o brasileiro Raul Roulien. Mas quem roubou a cena foi um casal de coadjuvantes: Fred Astaire e Ginger Rogers. O público ficou eletrizado ao vê-los dançar “Carioca”, de Vincent Youmans, Gus Kahn e Edward Eliscu, que se tornou mania nacional nos Estados Unidos e ganhou uma indicação ao primeiro Oscar de Melhor Canção Original.
Aos 34 anos, Astaire fazia apenas seu segundo trabalho no cinema, mas já era um veterano da Broadway e do West End londrino, onde, ao lado da irmã, Adele, havia estrelado musicais de grandes nomes do cancioneiro americano, como Jerome Kern, Cole Porter e os irmãos George e Ira Gershwin. Rogers, por sua vez, também despontara nos teatros nova-iorquinos com um musical gershwiniano, Girl Crazy (1930), mas, ao contrário de Fred, aos 22 anos já tinha mais de vinte filmes no currículo.
Foi durante os ensaios de Girl Crazy que eles se conheceram, quando Astaire foi chamado para ajudar na coreografia de alguns números musicais, e chegaram a sair algumas vezes. No final de um desses encontros, segundo Ginger, o chofer de Fred teve de esperar cinco minutos os dois saírem do carro, enquanto eles trocavam um beijo “que jamais teria sido aprovado pelo Código Hays!”
Depois de Voando para o Rio, o produtor Pandro S. Berman foi a Londres conferir Gay Divorce, o último musical de Fred nos palcos (e o único sem Adele, que havia abandonado a carreira para se casar). Ele gostou do que viu e comprou os direitos da peça, para transformá-la em um filme com Astaire & Rogers. A princípio, Fred não se opôs a trabalhar outra vez com Ginger, mas rechaçou a ideia de uma nova parceria. Após toda uma vida à sombra da irmã, ele temia ficar preso novamente a uma companheira. No entanto, logo seria convencido do contrário.
A alegre divorciada (The Gay Divorcee, 1934) foi um sucesso ainda maior que Voando para o Rio. Indicado a cinco Oscars, incluindo o de Melhor Filme, ganhou o de Melhor Canção Original, com “The Continental”, de Con Conrad e Herb Magidson (derrotando “Carioca”). Quase todos os filmes da dupla seriam indicados nessa categoria.

Mas esse não foi o único padrão que A alegre divorciada estabeleceu para a série. Como o ritmo das filmagens era acelerado – geralmente, quando um filme estava em produção, eles já sabiam qual seria o próximo –, fórmulas foram criadas. Os enredos, com poucas variações, quase sempre seguiam um roteiro:
- Fred e Ginger se conhecem fortuitamente e ele se apaixona à primeira vista (ou os dois se reencontram após um longo tempo, depois de ela ter recusado um pedido de casamento dele);
- Fred tenta conquistar Ginger, que a princípio o esnoba, mas acaba cedendo (depois de dançarem juntos);
- Um mal-entendido (ou uma bobagem inadvertidamente cometida por Fred) deixa Ginger furiosa com ele e os dois se separam;
- O mal-entendido se esclarece (ou Fred se redime), os dois se reconciliam e vivem felizes para sempre.
O elenco-base também começou a se formar aí. Eric Blore (que já havia aparecido em Voando para o Rio) atuou em cinco filmes, interpretando ingleses temperamentais e exasperados. Edward Everett Horton (três filmes) fazia o amigo trapalhão de Fred que só arrumava encrenca. Erik Rhodes era o italiano histriônico que atravessava o caminho para a felicidade de Astaire e Rogers. Mais tarde se juntou a eles Helen Broderick (mãe do ator Broderick Crawford), como a sarcástica amiga e conselheira de Ginger. Os dois últimos só trabalharam em dois filmes cada, mas suas performances foram tão marcantes que parece até que fizeram mais. Infelizmente, a única vez em que os quatro atuaram juntos foi em O Picolino (Top Hat, 1935).
Randolph Scott também apareceu em dois filmes, e Irene Dunne, em um. As futuras estrelas Lucille Ball e Betty Grable fizeram pequenas pontas na série.
Atrás das câmeras, havia Mark Sandrich, que dirigiu cinco dos dez filmes, e o coreógrafo Hermes Pan.
Amigo de Ginger desde o musical da Broadway Top Speed (1929), Pan só conheceu Fred em Voando para o Rio, mas os dois se tornaram inseparáveis. Eles criaram as coreografias de todos os números musicais da série e continuaram trabalhando juntos após o fim da parceria com Rogers. Além disso, tinham uma grande semelhança física, a ponto de serem confundidos.

Fred revolucionou a maneira de se filmar a dança no cinema, fazendo questão de que os dançarinos fossem mostrados de corpo inteiro e de que os números musicais tivessem o mínimo de cortes possível. Por acordo com o estúdio, trabalhava sozinho com Pan, o pianista Hal Borne e – quando a coreografia estava essencialmente pronta – Ginger. Durante a criação, Pan assumia o lugar de Rogers e, quando esta chegava, ele assumia o de Astaire, gerando a piada de que ele era o parceiro favorito de Fred.
Ginger também tinha importantes contribuições, muitas vezes dando o toque final aos números. Entre outras, foi dela a ideia de usar patins em “Let’s Call the Whole Thing Off”, do filme Vamos Dançar? (Shall We Dance, 1937).
Fred era também um notório perfeccionista. Evitava repetir movimentos que já tivesse usado em danças anteriores e filmava inúmeras tomadas até chegar à ideal, muitas vezes invadindo a madrugada. As filmagens do número “Never Gonna Dance”, de Ritmo louco (Swing Time, 1936), por exemplo, tiveram 48 tomadas e foram até as 4h da manhã de um domingo. Ginger terminou com os pés sangrando.
Ela era quem mais sofria, pois com frequência tinha de fazer hora extra, para fechar alguma cena, retocar a maquiagem etc., além de trabalhar em outros filmes, ao passo que Astaire se dedicava quase exclusivamente à parceria. Como diz uma famosa máxima já creditada a vários autores, Ginger fazia tudo que Fred fazia, mas de trás para frente e de salto alto. Em sua autobiografia, ela atribui a frase ao cartunista Bob Thaves, que a publicou na tirinha Frank and Ernest em 1982.

O biênio 1935-36 foi o auge da série. Nesse período foram lançados quatro filmes: no primeiro ano, Roberta e O Picolino; no segundo, Nas águas da esquadra (Follow the Fleet – particularmente, o meu preferido) e Ritmo louco.
O Picolino se tornou o grande clássico da dupla, a segunda maior bilheteria de 1935 e a maior da RKO na década de 1930. Recebeu quatro indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme e Melhor Canção Original, por “Cheek to Cheek”, de Irving Berlin, cuja dança é um dos momentos mais emblemáticos que o cinema já registrou.
Outro número do filme, “Top Hat, White Tie and Tails”, em que Astaire dança de fraque e cartola, fez dele um ícone da elegância. Elegância essa também vista nos opulentos e gigantescos cenários art déco criados por Carroll Clark sob supervisão de Van Nest Polglase (que invariavelmente levava os créditos de direção de arte na RKO, mesmo sem pôr a mão na massa), chamados de BWS (Big White Sets, ou “Grandes Sets Brancos”).
Os Estados Unidos atravessavam a Grande Depressão, que também afetou vários países, fazendo muita gente perder tudo de um dia para o outro. A população necessitava de uma válvula de escape para esquecer os problemas e a encontrou no maravilhoso mundo de Astaire & Rogers, que também foram responsáveis por fomentar o interesse do público pela dança. Mais que sucesso, Fred e Ginger estavam fazendo história.
Ritmo louco trouxe mais um Oscar de Melhor Canção Original, com “The Way You Look Tonight”, de Jerome Kern e Dorothy Fields. Esta é outra marca da série: canções clássicas dos maiores compositores da época foram feitas especialmente para Fred & Ginger ou popularizadas por eles. Entre elas, além das já citadas, estão “Night and Day”, de Cole Porter, em A alegre divorciada; “Smoke Gets in Your Eyes”, de Kern e Otto Harbach, em Roberta; “Let’s Face the Music and Dance”, de Irving Berlin, em Nas águas da esquadra; “They Can’t Take That Away from Me”, de George e Ira Gershwin, em Vamos Dançar?; e “Change Partners”, de Berlin, em Dance comigo (Carefree, 1938).
Ao entrar em cartaz, Ritmo louco encheu os cinemas, mas começou a perder fôlego após algumas semanas. Em 1937 a dupla fez apenas Vamos dançar?, que marcou o reencontro com os irmãos Gershwin. A série começava a dar sinais de desgaste e os dois astros buscavam outros rumos. Então eles pediram ao estúdio uma pausa e foram atendidos.
Desde aquela época, havia boatos de que Astaire e Rogers se detestavam e viviam às turras no set. É verdade que eles não eram amigos íntimos e tiveram alguns atritos durante as filmagens (como o famoso episódio do vestido de Ginger em “Cheek to Cheek”), mas também se divertiam muito. Em suas respectivas autobiografias, eles falam um do outro com bastante carinho e admiração. Ginger chega a admitir que os dois poderiam ter desenvolvido um relacionamento mais sério se ela não tivesse deixado Nova York cerca de dois anos antes dele.
No entanto, Rogers também manifestou algum ressentimento por ganhar menos destaque que o parceiro e uma grande mágoa de Mark Sandrich, que, segundo ela, a preteria em favor de Astaire.
Após Vamos Dançar?, Fred estrelou Cativa e cativante (A Damsel in Distress, 1937), o nono filme de sua carreira e apenas o segundo sem Ginger. Novamente ele trabalhou com os Gershwin – a última vez com George, que morreu em julho daquele ano, quatro meses antes do lançamento. Enquanto isso, Ginger apareceu em três produções: No teatro da vida (Stage Door, 1937), Que papai não saiba (Vivacious Lady, 1938) e O mundo se diverte (Having Wonderful Time, 1938).
Mas ainda não era hora de dizer adeus. Em 1938, a RKO passava por graves problemas financeiros e, após quase um ano e meio afastados, Astaire e Rogers se reencontraram em Dance comigo. Contudo, o filme se tornou o primeiro da dupla a perder dinheiro.
Dance comigo é notável por conter o beijo mais longo entre Fred e Ginger. Há um mito de que os dois nunca tinham se beijado, o que não é exatamente verdade, mas até aí só haviam ocorrido alguns rápidos selinhos. Depois de sete filmes, até a imprensa já questionava essa escassez. Muitos – inclusive Rogers – põem a culpa no ciúme de Phyllis, a esposa de Astaire, mas ele negava categoricamente essa hipótese, alegando que apenas não gostava de “cenas de amor melosas”.

Outra célebre frase sobre a dupla, atribuída a Katharine Hepburn, diz que Fred dava classe a Ginger, enquanto ela dava a ele sex appeal. Fosse qual fosse o real motivo, os beijos eram supérfluos. Fred e Ginger faziam amor pela dança. Dançando, eles nos convenciam de que aquela loura deslumbrante nasceu para aquele homem magricela, meio narigudo e doze anos mais velho.
No ano seguinte, foi lançado A história de Irene e Vernon Castle (The Story of Vernon and Irene Castle, 1939), sobre o famoso casal de dançarinos da década de 1910. Desde setembro de 1938, ele já vinha sendo anunciado como a despedida de Astaire & Rogers. Como um prenúncio do fim, é um item atípico no cânone da dupla: só tem uma canção original e é o primeiro filme em que os dois se casam, a única cinebiografia e o único a ter um final trágico. Apesar de bem recebido pelo público, novamente gerou prejuízo para o estúdio, devido ao alto custo de produção. Depois de seis anos e nove filmes, o ciclo de Fred & Ginger na RKO se encerrou.
Após a separação, Ginger provou seu talento em gêneros variados e chegou ao auge da carreira, ganhando o Oscar por sua atuação no drama Kitty Foyle (1940) e se tornando uma das atrizes mais bem-pagas de Hollywood.
Aos 40 anos, Fred cogitou se aposentar – uma ideia que ele já havia contemplado antes e voltaria a contemplar depois –, mas foi convencido por Phyllis a seguir em frente. Ao longo da década de 1940, dançou e cantou com novas parceiras, como Eleanor Powell, Paulette Goddard, Rita Hayworth e Judy Garland. Com a última, ele estrelou Desfile de Páscoa (Easter Parade, 1948), cujo sucesso estimulou a MGM a criar mais um veículo para os dois.
Mas a incrível história de Fred & Ginger não poderia terminar sem um epílogo. Devido aos seus frequentes problemas físicos e emocionais, Judy acabou sacada do projeto, e para substituí-la o produtor Arthur Freed decidiu chamar ninguém menos que Ginger Rogers. Ao receber o telefonema do estúdio perguntando se ela teria algo contra fazer outro filme com Astaire, Rogers respondeu com indignação: “Que pergunta é essa? Eu adoraria fazer outro filme com Fred. O que você tem em mente?”
Assim, depois de dez anos, Fred e Ginger estavam de volta em Ciúme, sinal de amor (The Barkleys of Broadway, 1949). Um trabalho cheio de novidades para a dupla: além do estúdio novo, foi seu primeiro filme juntos em Technicolor. Também pela primeira vez eles começam a história como casados, mas, como que para coroar sua trajetória, dançam uma velha canção: “They Can’t Take That Away from Me”, cujo letrista, Ira Gershwin, também trabalhou no filme.

Muito se discute quem foi a melhor parceira de Fred Astaire no cinema. Eu respondo sem medo de errar: Ginger Rogers. Ginger podia não ser a melhor dançarina, mas, além de uma estupenda atriz, tinha com Fred uma química sem igual. Os dez filmes estão aí para provar.









